Publicada originalmente na edição 425 de Globo Rural (abril/2021)
Em mineiros, no sudoeste de Goiás, o produtor Rogério Vian corre para finalizar a colheita da soja, plantada em mil hectares, em áreas próprias e arrendadas. Na contramão da grande maioria dos sojicultores brasileiros, ele ainda não vendeu a soja no mercado futuro.
Com boa parte da safra travada na bolsa de valores entre R$ 80 e R$ 90 por saca, tampouco está ligando para a constante alta do dólar frente à moeda nacional. Não é o tipo de preocupação que ele tem há pelo menos 15 anos, quando migrou da agricultura convencional para a biológica.
Na Fazenda Sélia, Vian produz soja a um custo 50% abaixo da média brasileira e vende a produção por preços mais altos, conforme a variação cambial. E isso tem a ver com o manejo que ele adotou na propriedade, que, por fazer divisa com o Parque Nacional das Emas, não pode receber defensivos químicos desde 2005.
“O agricultor tem de pensar na rentabilidade e aprender a não trabalhar com a lógica de produtos, mas com a lógica da produção”, diz. “Temos várias ferramentas de manejo sustentável que podem ser aplicadas na lavoura para elevar a rentabilidade e reduzir os custos.”
Os biológicos chegaram à propriedade seguindo essa filosofia. Hoje, Vian, que também preside o Grupo de Agricultura Sustentável (GAAS), colhe, em média, de 60 a 70 sacas por hectare, com custo médio de R$ 2 mil por hectare. A média nacional está em torno de R$ 4 mil por hectare para a safra 2021/2022, valor 10% acima da média da safra passada, devido à alta da moeda norte-americana.
Se tivesse comercializado soja no dia em que conversou com a Globo Rural, na segunda quinzena de março, a saca seria vendida por R$ 170. A lógica é que ele utiliza apenas insumos biológicos comprados no mercado regional, em real. “Meu custo de produção é em real e a comercialização, em dólar”, explica. “O agricultor precisa pensar na bioeconomia circular e no quanto isso aumenta a sua rentabilidade.”
Para o manejo, o produtor de Mineiros lança mão de todos os tipos de defensivos biológicos, homeopatia, óleos e extratos, fertilização natural e compostagem. Quando decidiu migrar para a agricultura sustentável, investiu em uma biofábrica, para multiplicar os insumos na fazenda, sobretudo as bactérias e os fungos nativos do microclima da propriedade.
“Todo ambiente tem a sua biota natural, cada planta tem sua micorriza (tipos de fungos associados às raízes das plantas, que facilitam a absorção de nutrientes), seus microrganismos nativos e, para promover o equilíbrio do sistema, temos de utilizar os seres nativos, um manejo biológico regional”, alerta. É a chamada multiplicação on farm, quando o produtor, ao invés de comprar produtos prontos no mercado, decide fabricálos por conta própria.
A técnica é apoiada pela Lei de Produção Orgânica (Lei 10.831/03 e Decreto 6.913/09), que institui que os produtos fitossanitários, aprovados para a produção de orgânicos e destinados ao uso próprio, não precisam ter registro. Na multiplicação on farm, o agricultor pode reproduzir estirpes de bactérias e de fungos, além de fazer compostagem a partir de resíduos orgânicos. “Mas é preciso ter cuidados com a assepsia e adquirir cepas de qualidade para a multiplicação, para garantir segurança da saúde pública e do meio ambiente”, diz Vian.
A principal vantagem da multiplicação on farm é que as doses que serão utilizadas na lavoura são mais concentradas. “O produto comercial tem doses menores e o agricultor tem de investir mais para conseguir realizar o manejo em toda a área”, diz. “Não existe uma bala de prata, a agricultura tem muitas variáveis e há a necessidade de doses específicas para cada situação.” No caso do produtor de Mineiros, o investimento feito na montagem da biofábrica se pagou em menos de um ano. “Claro que isso depende do tamanho da propriedade, mas, no geral, a biofábrica se paga em um ano.”
O Grupo de Agricultura Sustentável, que reúne cerca de 600 produtores rurais filiados, empenhados na agricultura biológica, já soma 700 mil hectares cultivados apenas com produtos biológicos. No entanto, o potencial desse segmento na safra 2021/2022 deve crescer consideravelmente. “Somente entre os consultores do grupo, o potencial deve atingir 5 milhões de hectares daqui a duas ou três safras”, diz Vian.
E o franco crescimento do mercado de biológicos pode mudar a cara da agricultura nacional e instituir novos parâmetros para o setor. Em 2020, ano em que o país teve o maior número de produtos biológicos já registrados pelas autoridades sanitárias, 95, o segmento chegou a movimentar US$ 237milhões, segundopesquisa realizadapelaSpark Inteligência Estratégica, com sede em Valinhos (SP).
O levantamento apontou também que a área potencial tratada com os produtos aumentou na última safra, para 19,4 milhões de hectares, 23% a mais que na safra anterior e, de acordo com a Spark, deve aumentar muito mais nesta safra. A pesquisa é realizada com agricultores, em todas as regiões, e leva em consideração apenas os produtos comerciais, mas não os produzidos on farm.
Soja, cana-de-açúcar, algodão, milho e café são as culturas em que o uso mais cresce e os bioinseticidas, bionematicidas e biofungicidas foram os produtos mais adotados até agora. “O setor de cana-de-açúcar adotou os biológicos há muito tempo, para o controle da broca da cana, com os macrobiológicos (cotesia flavipes).
Atualmente, são culturas como a soja e o algodão que puxam esse crescimento”, explica André Dias, sócio-diretor da Spark. “A soja continuará puxando a demanda dos produtos biológicos porque já existem mais produtos registrados para a cultura nessa safra, mas estamos vendo uma movimentação muito grande para a cultura do algodão e do milho, e também na cafeicultura”, afirma Dias.
Ele acredita que a evolução do mercado de biológicos é puxada por fatores como a pressão por sustentabilidade, a conscientização dos consumidores e produtores rurais pela segurança alimentar e meio ambiente e a disponibilidade de mais produtos registrados no mercado.
Em Campo Verde, no interior de Mato Grosso, está localizada a Fazenda Filadélfia, uma das propriedades do Grupo Bom Futuro, o maior produtor de grãos do mundo, com 583 mil hectares cultivados e uma produção, só de soja, que beira 1,3 milhão de toneladas.
No final do ano passado, a Isca Tecnologias, empresa que atua no setor de biológicos há 20 anos, anunciou uma parceria inédita: produzir biológicos sob demanda na propriedade do grupo. É a multiplicação on farm – só que não. Lá, a empresa criou um Centro de Excelência de Semioquímicos para Grandes Culturas, com dez especialistas, de várias partes do mundo, que atuam no local para criar os produtos biológicos.
Agenor Mafra Neto, CEO da Isca, explica que semioquímicos são substâncias, em sua maioria feromônios, utilizadas para manipular o comportamento de algumas pragas, como a disrupção do acasalamento. “É a química natural que tem o poder de reduzir as aplicações de defensivos químicos em lavouras”, explica.
Na Filadélfia, o foco é utilizar feromônios para combater as pragas da soja, milho e algodão, como a lagarta do cartucho (Spodoptera frugiperda), o percevejo e o bicudo, praga recorrente nas lavouras de algodão em todo o país. “O produtor tem de mudar a forma de pensar no manejo da lavoura e a empresa tem de entender que o agricultor precisa estar inserido no processo para que ambos encontrem a solução”, afirmou o executivo.
José Maria Bortolli, um dos sócios do Grupo Bom Futuro, é um dos que mudaram a forma de pensar há tempos e, no manejo das lavouras do grupo, utiliza produtos biológicos há mais de 12 anos. Começou com a multiplicação on farm de bactérias e fungos, como faz o produtor Vian, em Goiás, e abriu espaço para os demais produtos nas últimas safras.
“Estamos preocupados com o meio ambiente e precisamos cuidar da terra e das pessoas, promover uma agricultura sustentável”, afirmou. “Precisamos reduzir a aplicação de defensivos químicos e vamos substituí-los por insumos biológicos.”
Em entrevista à Globo Rural, Mafra (que mora nos Estados Unidos, onde fica a sede da Isca) disse acreditar que o salto no mercado dos biológicos está acontecendo porque os custos desses produtos estão ficando mais reduzidos e, ainda, porque as formas de aplicação se modernizaram. “Custo é fundamental para o agricultor e as soluções biológicas eram, até certo tempo, mais caras que os defensivos tradicionais”, disse.
Para otimizar os produtos biológicos em lavouras de grandes extensões, como as do grupo mato-grossense, a aplicação é feita por aeronaves e drones. “A aplicação mecânica também dificultava um pouco a eficiência dos produtos biológicos nos anos passados”, apontou Mafra.
“É eficiente em algumas plantações menores, mas, hoje, há tecnologias bastante avançadas para aumentar a eficiência das aplicações em grandes lavouras. As aeronaves conseguem cobrir mil hectares em poucas horas. Manualmente, isso levaria dias, talvez semanas. E, com as tecnologias dos drones, é possível entrar em pontos específicos da lavoura."
Na opinião de Marcelo Giuliano, diretor da AgBiTech, empresa de origem australiana que atua no setor de biológicos no Brasil desde a safra 2015/2016, a demanda global por sustentabilidade está impondo novos paradigmas para a agricultura e o produtor brasileiro vai, rapidamente, aderir a esse novo manejo.
“É um mercado muito grande e o Brasil ainda faz parte de uma pequena parcela dele, mas, com o potencial agrícola que temos e a entrada de novos produtos, não vai demorar muito para que, em pouco tempo, esse setor ganhe muito mais espaço”, disse. “Na safra 2019/2020, já temos pelo menos os dez maiores grupos produtores de grãos do Brasil utilizando produtos biológicos em suas lavouras.”
A AgBiTech anunciou, recentemente, produtos para controle de mariposas em lavouras de algodão e para a lagarta do cartucho, praga que promete dar muita dor de cabeça aos agricultores brasileiros na safra 2021/2022.
“Sabemos que a praga virá, o produtor não deve ficar esperando a praga atacar. O ideal é não deixar chegar. Através das armadilhas, podemos saber quando a população de insetos aumenta na lavoura.” Segundo o executivo, cerca de 3 milhões de hectares cultiváveis já utilizam as soluções da empresa. “Foi um aumento gradual, 500 mil hectares, 2 milhões de hectares, 3 milhões de hectares...”
O diretor do Grupo JCN, o engenheiro agrônomo Kriss Corso, de 34 anos, gerencia 50 mil hectares de lavouras de soja, milho, algodão e café em Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e São Paulo. Assumiu os negócios da família em 2008, quando tinha apenas 21 anos de idade e apostou na tríade sustentabilidade, tecnologia e digitalização. “No mundo em que estamos vivendo, adotar as boas práticas agrícolas é fundamental para os negócios. E temos tecnologias avançadas para fazer isso de forma simples”.
Nas áreas da JCN, tudo é rastreado, do combustível ao uso de insumos nas lavouras. Gradualmente, ele está substituindo os defensivos químicos pelos biológicos. Essa é a terceira safra produzida com produtos biológicos, voltados para controlar ataques de lagartas na soja e mariposas em algodão.
“Dá para você ver a diferença na lavoura porque o biológico é residual, ele fica lá por uns 20 dias e já reduzimos as aplicações convencionais em pelo menos 50% em todas as áreas”, disse o agricultor, que também cita o problema da resistência das pragas às moléculas químicas.
"Todo agricultor tá sentindo o problema. Há moléculas que estão perdendo a eficácia muito rápido e, se há uma forma de complementar o manejo, lançando mão de uma ferramenta que agride menos o meio ambiente e gera economia, então essa é a solução"
Kriss Corso, diretor do Grupo JCN
Corso calcula que, de modo geral, a utilização do controle biológico gerou uma economia de 20% com protetores de cultivo na safra corrente, mas que, para alcançar essa economia, foi preciso “enxergar lá na frente”. “Você tem de programar a eficiência para colher os frutos. A economia vem quando o produtor tem um amadurecimento, uma conscientização de todo o processo. Com as tecnologias disponíveis, é possível prever a iminência de uma praga e, simplesmente, não deixar o ataque acontecer. O manejo com o produto biológico é preventivo.”
Fonte: Globo Rural