A extinção a Renca – reserva mineral no Pará e no Amapá do tamanho da Dinamarca – é “o maior ataque à Amazônia em 50 anos”. O alarme ecoou no final de agosto em todo o mundo: da tribuna do Senado, pela voz do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), ao jornal inglês The Guardian. A forte reação deu resultado e o presidente Michel Temer determinou na quinta-feira (31) “a paralisação de todos os procedimentos relativos a eventuais direitos minerários na área (…) em respeito às legítimas manifestações da sociedade e a necessidade de esclarecer e discutir as condições que levaram à decisão de extinção da Renca”.
Geólogos ouvidos pela BBC Brasil, no entanto, acusam os protagonistas dessa reação de “histeria”, “infantilidade” e “desinformação”. Eles argumentam que a maior parte da Renca (Reserva Nacional do Cobre e Associados) continuará bloqueada para mineração porque hoje seu território engloba nove áreas protegidas, entre unidades de preservação ambiental e terras indígenas, que não sofreram alteração no decreto de extinção da reserva mineral. Essa área bloqueada representa mais de 70% da Renca, segundo a ONG WWF.
A Renca foi criada em 1984, no regime militar, para evitar a exploração da área por capital estrangeiro – embora as formações geológicas sejam promissoras, não se conhece seu potencial real e ainda seriam necessários anos de pesquisa para que mineradoras iniciem operação.
Enquanto as pesquisas estão paralisadas, os geólogos sustentam que a reserva está hoje ocupada por garimpeiros ilegais que não seguem qualquer legislação ambiental, enquanto a mineração feita por empresas estaria sujeita a uma série de regras que mitigam seu impacto. Segundo estimativa do instituto Imazon, a partir dos voos que partem de Laranjal do Jari (AP), cerca de 2 mil garimpeiros atuariam na Renca hoje.
“A Renca não é o paraíso de Adão e Eva intocável. É uma região onde está havendo garimpagem violenta sem respeito à lei, aos padrões de exploração mineral avançados e sem recolher impostos”, afirma o geólogo Onildo Marini, professor aposentado da UnB e hoje diretor-executivo da Agência para o Desenvolvimento Tecnológico da Indústria Mineral Brasileira (Adimb).
Os geólogos ouvidos pela BBC Brasil dizem também que a presença de mineradoras na Amazônia coíbe o avanço de outras atividades de maior impacto, como agropecuária e extração de madeira. Assim como o governo tem feito, eles citam o exemplo da exploração de minério de ferro em Carajás, pela Vale. Em parceria com o ICMBio, órgão de conservação ambiental do governo, a mineradora banca a preservação de cinco unidades de conservação no entorno da mina. Elas somam cerca de 7,6 mil quilômetros quadrados (cinco vezes a cidade de São Paulo), dos quais a operação da Vale ocupa menos de 2%.
Imagens de satélite mostram que nos últimos 40 anos a área ao redor dessas cinco unidades foi intensamente devastada por madeireiros e pela agropecuária. Ambientalistas, porém, consideram que a atividade mineradora acabou atraindo população para a região, indiretamente provocando o desenvolvimento dessas atividades mais predatórias.
“No caso da Renca, virou uma histeria por uma grande desinformação. Qualquer área do Brasil em que a mineração acontece tem um impacto, não se pode negar isso. Mas o impacto é pontual, muito menor que a agricultura. Sou suspeito, pois sou geólogo, mas falo com conhecimento de causa”, afirma Claudio Gerheim Porto, professor do departamento de Geologia da UFRJ.
Insuspeito, o jornalista Lúcio Flávio Pinto, referência na cobertura da Amazônia e na denúncia de ilegalidades de grandes empresas na região, concorda com a maioria das críticas feitas pelos geólogos e defende a extinção da Renca.
Ele é crítico de Carajás pelo fato de a maior parte da produção ser exportada como matéria bruta, em vez de ser processada em aço no país, o que geraria mais riqueza. Considera, porém, que a operação da Vale de fato gerou preservação.
“Eu combato Carajás porque é um projeto colonial, mas, se não fosse Carajás, não teria mais floresta nesta área. As pessoas (que estão criticando o fim da Renca) ou estão de boa intenção enganadas, ou com excesso de boa intenção, ou têm má-fé”, afirmou à BBC Brasil.
O jornalista defende que a área seja aberta para mineração e que as empresas paguem taxas para bancar a conservação das reservas florestais e indígenas.
“Há risco de impacto ambiental (com a mineração) na Renca? Sim, toda vez que você adensa a população (na área devido a uma nova atividade econômica), aumenta o risco de impacto, mas é muito mais fácil você prevenir e controlar com a mineradora do que com garimpeiro, com soja, com madeireiro, com assentamento rural”, disse.
Apesar disso, Pinto reconhece que a forte reação da sociedade acabou tendo efeitos positivos.
Após as críticas, Temer revogou o primeiro decreto e publicou um novo prevendo a criação do Comitê de Acompanhamento das Áreas Ambientais da Extinta Renca, que será consultado sobre a concessão de outorgas para a exploração mineral na área. O órgão terá representantes de ministérios, Funai, Agência Nacional de Mineração e dos governos do Amapá e do Pará.
Ele comemorou a iniciativa, “inédita, uma grande vitória”, mas apontou a necessidade de que o comitê tenha também a participação do Ministério Público e da sociedade civil, para que possa atuar com isenção.
Adriana Ramos, coordenadora de Política e Direito do Instituto Socioambiental (ISA), rebate as críticas aos que se opuseram ao fim da Renca – e aponta riscos ambientais caso isso se confirme.
Ela nota que a extinção da reserva mineral vem acompanhada de outras propostas do governo, como flexibilização do licenciamento ambiental, regulamentação da mineração em terra indígena e redução de unidades de preservação como a Floresta Nacional do Jamanxim, no Pará.
“A revogação da Renca foi uma gota d’água. Ela pegou uma sociedade insegura, preocupada e vendo uma movimentação absolutamente errática do governo em relação à conservação da Amazônia como um todo”, afirma.
“A preocupação é com o conjunto da obra. Se o Congresso aprovar as mudanças do licenciamento ambiental nos termos que o governo negociou com diferentes setores, vai retirar uma série de salvaguardas importantíssimas que teriam que ser cumpridas pela mineração”, reforça.
Ramos também considera que não há garantia de que a presença das mineradoras vai coibir o garimpo ilegal e teme que os garimpeiros acabem migrando para outras áreas de preservação. Ele cita também o desastre ambiental de Mariana, devido ao rompimento da barragem de rejeitos de uma mineradora da Vale, para argumentar que a fiscalização sobre as empresas é falha.
A coordenadora do ISA defende o desenvolvimento de atividades que não impliquem em qualquer desmatamento, como manejo florestal e extrativismo vegetal (óleos, seringa, castanha, etc.).
“O maior patrimônio da Amazônia é ser a maior área de floresta tropical contínua do planeta. Qualquer opção que signifique retirada da floresta não deveria ser a nossa primeira opção”, defende.
Os geólogos ironizam a proposta: “A Amazônia intocável é uma infantilidade, não melhora a vida do povo amazônico, nem traz recursos para o país como um todo. Se olhar a nossa balança comercial, o que está salvando o Brasil é a agricultura e a mineração”, afirma Marini.
“Essa é a perspectiva que queremos para a população amazônica? Viver de salário mínimo, catando castanha, retirando borracha? Um país com 13 milhões de desempregados não pode se dar ao luxo de bloquear uma atividade como a mineração, que com um dano mínimo gera alto valor”, crítica também Elmer Prata Salomão, dono da consultoria Geos e presidente do conselho consultivo da Associação Brasileira das Empresas de Pesquisa Mineral.
Com um cálculo que publicou no livro Recursos Minerais no Brasil: problemas e desafios junto com o geólogo Tadeu Veiga, ele busca fundamentar seu argumento.
A partir dos números do Departamento Nacional de Produção Mineral – que apontam que em 2013 foram extraídas 175 milhões de toneladas de minérios diversos na Amazônia, no valor de US$ 14,7 bilhões – os dois calculam que a atividade naquele ano gerou US$ 26,6 milhões de dólares por hectare lavrado.
Para chegar nesse cálculo, eles estimaram que as 175 milhões de toneladas de minérios extraídas implicaram na remoção de 566 milhões toneladas de solos e rochas. Isso, segundo eles, caberia em um buraco com superfície equivalente a uma “pequena fazenda” de 554 hectares (um terço da cidade de São Paulo) e profundidade de 50 metros (um prédio de pouco mais de 15 andares).
“Apenas para comparação, a produtividade da soja na região Norte é de 3 toneladas por hectare. A cotação em 2013 oscilava em torno de US$ 420 por tonelada. A receita do agronegócio alcançaria então US$ 1.260 por hectare, muito menor do que a receita média proporcionada pelas jazidas em lavra”, comparam no artigo.
A coordenadora do ISA responde à ironia: “As populações que são da Amazônia vivem de coletar castanha. Tem comunidade que vende castanha para o pão da Wickbold, tem comunidade que vende óleos para os produtos da Natura. Isso é uma economia de base florestal, sustentável e que atende a inclusão social das comunidades locais, que não são geólogos para trabalhar na mineração”.
Lúcio Pinto ressalta que as cidades do Pará impactadas pela mineração são as que têm maior renda per capita do Estado e também as prefeituras com maior receita – mas, por causa da corrupção e da má administração, persistem problemas graves em saúde, moradia e saneamento, observa.
Fonte: G1